Aumenta que é Rock'n Roll: um rito de reencontro com a democracia

O que os jovens têm a dizer sobre o seu tempo histórico?

Sou daqueles que sente a necessidade de escrever sobre filmes e outras obras de arte que tenham chamado a minha atenção. Criações que por algum motivo a gente não consegue interpretar assim de cara ao sair do cinema ou fechar o livro, mas que te acompanham depois e te fazem querer elaborar melhor o que você viu ou leu.


Esse é o caso do filme "Aumenta que é Rock'n Roll", dirigido por Tomás Portella, que conta a história da rádio Fluminense FM, ou a "Maldita", como ficou conhecida. Acompanhamos a jornada do jovem Luiz Antônio, o criador da rádio, e o seu esforço em dar voz a uma geração, a dos anos 1980, aquela que viu o rock se afirmar na cena cultural como o principal vetor de manifestação de identidade da juventude brasileira.

Este é, de fato, o retrato de uma era e dos que foram jovens naqueles anos, que navegaram nos resquícios da censura, que experimentaram a lenta abertura democrática e caminharam os passos de um aprendizado difícil, o aprendizado das virtudes e obrigações da vida adulta. Vemos, na trajetória da rádio e nos desafios aos quais esses personagens são confrontados, a representação do nosso próprio aprendizado como nação naquele momento, em que as liberdades duramente conquistadas precisaram se reafirmar, deixando para trás os dias obscuros de opressão dos militares no poder.

O personagem principal de "Aumenta que é Rock'n Roll" terá que travar muitas lutas em torno do gênero musical no qual acredita, tendo inclusive que se contrapor em alguns momentos à própria chefia, com constantes ameaças de fechamento por questões financeiras (a rádio era vinculada a um grupo que tinha o jornal "O Fluminense" como a principal empresa, deixando o rádio em segundo plano). Essa, porém, é apenas a superfície do personagem. Há outras lutas acontecendo em seu íntimo, representadas pelo modo como lida com uma emblemática fobia de multidões e, lógico, a descoberta do amor onde menos se poderia esperar.

Mesmo representando uma pessoa de verdade, o verdadeiro criador da rádio Fluminense FM, o protagonista do filme é construído de maneira muito eficiente (palmas para o ator Johnny Massaro), com a clara e acertada intenção de simbolizar toda a odisseia de amadurecimento de um sujeito cuja crise é dele, mas também de um tempo social que ele não controla, nas adversidades dos caminhos históricos da nossa jovem democracia, feita de muita raiva acumulada.


Acredito que seja por isso que eu tenha gostado tanto do filme, dado que meu livro "Enxofre", lançado no ano passado, narra uma história bem semelhante, guardadas as devidas diferenças no tocante ao momento histórico retratado que, no meu caso, é a virada dos anos de 1990 para os anos 2000. Assim como na obra de Tomás, o personagem principal desse romance é jovem, está em busca da afirmação através do rock e encarna, nas dificuldades de sua trajetória, a luta de uma geração. Até mesmo os momentos cômicos da narrativa audiovisual me remeteram ao livro, que também não tenta se levar a sério demais e confere aos personagens a multidimensionalidade que os torna humanos. É com naturalidade que compreendemos que a diversão faz parte da vida desses jovens. Ambas as obras, por fim, evitam o excesso de psicologismo na determinação da motivação dos seus protagonistas. Não conhecemos os pais de Luiz Antônio, por exemplo, não sabemos o que o levou a tornar-se um roqueiro e não sentimos falta desses dados biográficos. Não há a necessidade de construir todo um background para explicar a predileção que alguém possa ter pelo gênero rock ou qualquer outro estilo contra-hegemônico, pois a melhor forma de abordá-los, a meu ver, não é simplesmente mostrar como as pessoas chegaram a eles e sim compreender a sua função expressiva no contexto mostrado, o que o filme faz de maneira brilhante. Estamos no campo da estética e não da psicologia.


Para quem não sabe, a Fluminense foi a primeira rádio brasileira com uma programação dedicada cem por cento ao rock, o que, obviamente, foi motivo, à época, de desconfianças e conflitos os mais diversos, mas abriu caminho para muitas outras iniciativas semelhantes. Tornou-se uma referência. Foi o canal que tornou possível o surgimento, para o mainstream da mídia, de bandas como a pioneira Blitz, os Paralamas do Sucesso, o Barão Vermelho, a Legião Urbana e muitas outras. A mitologia em torno da Maldita é reforçada pelo filme, em cenas como a da lendária manhã de estreia da rádio, que nasce para o mundo no exato instante em que uma mulher negra dá à luz, no elevador logo abaixo, quase como uma repetição da própria história do rock´n roll, essa manifestação afrodiaspórica que surge do talento na guitarra de Sister Rosetta Tharpe. Muito simbólico. Ou então a cena do primeiro Rock in Rio, em 1985, já no final: ali está sinalizada a consagração da empreitada, como também a superação do personagem de sua fobia a multidões, o seu rito de passagem, concluindo o seu arco dramático e possibilitando a sua redenção através da conquista do amor. No plano geral, por fim, o anúncio de novos tempos: no palco, vemos o fim do show do Barão Vermelho e escutamos as palavras de Cazuza: "Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã. Um Brasil novo, com uma rapaziada esperta! Valeu!" Palavras que têm como pano de fundo a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, demarcando a conclusão de um período histórico e o começo de outro, verdadeira expressão das sensibilidades de uma época. Um rito de reencontro com a democracia.

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