“A Vila”: uma ilustração de conceitos de E. Durkheim


O texto a seguir tem por objetivo exemplificar alguns conceitos de Émile Durkheim, à luz do filme A Vila (The Village, 2004). O que se pretende aqui não é esgotar a análise desse longa sob uma perspectiva sociológica, mas fazer um recorte, um uso específico para ilustrar determinados conceitos durkheimianos, a saber: solidariedade mecânica versus solidariedade orgânica; anomia; sociedade tradicional versus sociedade moderna.
O filme A Vila, do diretor indiano radicado nos EUA, M. Night Shyamalan, foi originalmente concebido como uma metáfora sobre o medo instalado nos Estados Unidos da era Bush, pós-atentado de 11 de setembro de 2001. No filme, uma comunidade autossuficiente, aparentemente do século XIX, se estabelece nos limites de uma floresta onde viveriam estranhos seres, os "cujo-nome-não-se-menciona". A floresta separa a comunidade do resto do mundo, da civilização. Os habitantes da vila vivem em paz e harmonia, guiados por um conselho de anciãos. Há um pacto de não-agressão entre estes e os habitantes da floresta: um não invade o espaço do outro, os humanos usam cor amarela como forma de proteção e o vermelho está banido da cidade, por ser a cor dos monstros que habitam a floresta. É possível identificar uma associação metafórica com os atentados de 11 de setembro, mas não iremos nos ater a isso. Nossa tentativa aqui será a de fazer uma análise deste longa à luz de alguns conceitos de Émile Durkheim, pensador francês do século XIX, considerado um dos fundadores da sociologia.
A sociedade representada no filme “A Vila” pode ser caracterizada, sob a ótica durkheimiana, como uma sociedade tradicional na qual existe uma forte integração entre os seus membros. Nesse tipo de sociedade, segundo Durkheim, verifica-se a predominância de crenças e valores comuns e uma baixa divisão do trabalho. No filme, essas características ficam evidentes: tudo ali é produzido de forma comunitária, não há relações de troca e muito menos a figura do dinheiro. Outra característica de sociedades tradicionais que se observa em “A Vila” é que as normas e a moral são rigidamente estabelecidas pelo grupo de “anciãos” - formado pelos membros mais velhos da aldeia. De acordo com Durkheim, numa sociedade como esta, na qual existe uma enorme integração entre os indivíduos, integração esta oriunda de crenças e valores comuns, verifica-se o que ele conceituou como “solidariedade mecânica”. Fica bastante evidente esse tipo de solidariedade entre os habitantes da vila, uma vez que ela é definida por Durkheim como aquela que rege as sociedades mais simples, onde existe uma forte integração entre os indivíduos e as relações são baseadas com grande ênfase em crenças e valores comuns, sendo que as regras são impostas por medidas de coerção direta, sem a mediação de instituições especializadas. No filme, não importa se as crenças e os valores tenham sido artificialmente produzidos pelo grupo dos anciãos, mas sim o fato de que para os habitantes da vila essas crenças e valores eram absolutamente internalizados e dificilmente seriam questionados. Por isso mesmo, eram “naturalmente” a base da solidariedade dos seus membros, ou seja, solidariedade mecânica segundo Durkheim.
A sociedade moderna, aquela que depois descobrimos existir para além dos limites da floresta, representa uma ameaça disruptiva naquele contexto. Trata-se justamente de uma sociedade onde prevalece uma alta divisão do trabalho, fruto de um processo de industrialização já bastante avançado. Naquela sociedade “ameaçadora”, as relações entre os seus membros já não seriam mais baseadas em crenças e valores comuns justamente porque essas crenças e valores foram sendo diluídos pelo processo de divisão do trabalho presente que deu origem a relações de troca e monetização da economia. É justamente esse aspecto (qual seja, o processo da acumulação de capital e suas consequências catastróficas vivenciadas por alguns anciãos da sociedade retratada no filme “A Vila” - falências, brigas por disputas financeiras) que faz com estes anciãos rompam com aquela sociedade e comecem a adotar um modo de vida característico de sociedades tradicionais - como se fosse mesmo possível uma descomplexificação da vida social, uma supressão daquela maior diferenciação individual de que fala Durkheim em seus estudos. A sociedade moderna da qual a comunidade pretendeu escapar é caracterizada por uma solidariedade do tipo orgânica entre seus membros. Segundo Durkheim, a solidariedade orgânica é característica de sociedades que apresentam uma avançada divisão do trabalho, nas quais as crenças e valores comuns que funcionavam como elemento de integração entre os indivíduos cedem lugar a instituições reguladoras das relações entre as pessoas e, consequentemente, reguladoras da moral que nela prevalece.  
No contexto do filme “A Vila”, a cidade do outro lado da floresta pode ser considerada como uma civilização baseada na solidariedade orgânica. No filme, esse tipo de sociedade representou uma séria ameaça às pessoas - aos anciãos, oriundos do outro lado da floresta -  que passaram por infortúnios, fazendo com que deixassem de acreditar naquele modelo de civilização e terminassem por recriar uma sociedade na qual a solidariedade mecânica voltasse a imperar, ainda que as crenças e valores tenham sido artificialmente produzidas. O recurso ao medo (monstros da floresta), um elemento pré-moderno de regulação das condutas, era usado para que nenhuma dessas crenças e valores fossem violados. Os anciãos mantinham tudo isso em segredo fazendo com que tudo parecesse absolutamente real a todos os indivíduos.
Durkheim utilizaria o conceito de anomia para explicar o terror que a comunidade sentia em relação à desordem e à violência encontradas do “lado de fora”. Segundo Durkheim, anomia significa a ausência de regras e valores morais numa dada sociedade na qual a divisão do trabalho e a organização econômica fazem com que as crenças e valores tradicionais caiam por terra, não havendo tempo porém de uma solidariedade orgânica ser re-instituída. É nesse hiato, nesse descompasso entre a nova forma de organização econômica de uma sociedade e seu desregramento moral (pela decadência de suas crenças e valores), ou seja, é o hiato entre o advento da divisão do trabalho e a instituição de uma solidariedade orgânica entre os membros de uma sociedade que faz surgir um estado anômico, apontado por Durkheim como a causa de grande parte dos problemas morais dessas sociedades e consequentemente dos conflitos nelas existentes.

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