A sociologia da dominação em “Que horas ela volta”
Muito já se falou a respeito do aclamado filme de Anna Muylaert. Mas, de um ponto de vista sociológico, podemos indagar: o que exatamente essa obra cinematográfica poderia nos dizer sobre dominação de classe na sociedade brasileira contemporânea?
“Que horas ela volta” é um filme de 2015 que aborda as relações afetivas, bem como as tensões estabelecidas entre uma empregada doméstica nordestina em São Paulo (Val, interpretada por Regina Casé) e os membros da família de seus patrões, além de sua filha, deixada em Pernambuco. A aparente normalidade da vida desses personagens é abalada quando Jéssica (interpretada por Camila Márdila), a filha de Val, chega à metrópole para prestar o vestibular.
“Você é praticamente da família”, diz, a certa altura do filme, a personagem Bárbara a sua empregada Val. Quem nunca ouviu essa expressão alguma vez na vida, seja nas novelas, na literatura ou na vida real? Mas o que talvez muitos não tenham captado é o real sentido sociológico da sentença, muito bem desenvolvido pelo filme. As posturas da patroa, em cada uma de suas cenas, dramatizam exemplarmente aquelas ferramentas de dominação mais sutis disponíveis à burguesia que têm como função mascarar a sua própria condição de classe exploradora, como observou Marx: expedientes esses aos quais a própria classe burguesa recorre sem necessariamente se dar conta de sua função. Verdadeiros artifícios ideológicos, os falsos sorrisos de Bárbara querem dizer o exato oposto do que dizem: que o trabalho assalariado desempenhado por Val é como todos os outros, um vínculo não redutível às ligações tradicionais ou afetivas, verdadeira mercadoria disponibilizada a um comprador. A mistura entre o econômico e o familiar é, na verdade, um recurso de dominação típico de uma sociedade ainda marcada pelos traumas da escravidão, como bem apontou Jessé Souza, em “A elite do atraso”. A fronteira de classe é então maquiada, ou até ocultada das consciências, como se ela pudesse ser suprimida com meia dúzia de afagos.
E Val sabe muito bem disso. O seu habitus, para citar um termo bourdieusiano, é o de uma trabalhadora incansável, que teme ser demitida ao mínimo sinal de desajuste. Vemos, por exemplo, algumas cenas depois, a mesma Val, quase que numa espécie de confissão, declarar à sua filha: “Eu moro no serviço”. É como se, ao contrário, o serviço morasse nela, como se cada uma de suas qualidades subjetivas fosse determinada pela sua condição de empregada doméstica responsável não apenas pela reprodução material de uma casa, mas pela reprodução dos afetos entre os membros de uma família. Condição de alguém que traz consigo, num estado já incorporado e por isso quase automático, um empenho vital de conservação desse mundo que, se por um lado, domina quase todo o tempo de sua existência, por outro é responsável por aquilo que ela é como pessoa: “a pessoa já nasce sabendo o que é que pode e o que é que não pode”, ela diz à filha, na intenção de fazer valer a força das regras, mas deixando claro para nós leitores de Bourdieu que a naturalização de um comportamento nada tem de natural.
A declaração é feita quando Jéssica, em genuína postura divergente da esperada por sua mãe, começa a ameaçar a estabilidade daquele microcosmo justamente por não tomar conhecimento de regras tácitas que regem a aquiescência do trabalhador e não foram feitas para ela: “eles não são meus patrões”, enfatiza. “Por que não posso ficar no quarto de hóspedes?”, questiona. É o ponto de partida para o terremoto que se avizinha. Aquele tipo de falsa abertura que se estabelece quando, por exemplo, símbolos de privilégio, como a piscina, se colocam à disposição da recém-chegada, tem por função enfatizar ainda mais a existência da própria fronteira que se quer anunciar como suprimível. Por isso, Val não deixa de fazer o alerta: “a gente nega por educação”. A personagem não se dá conta, mas educação, em seu discurso, é o modo através do qual ela nomeia aquilo que aqui entendemos como um habitus específico que leva o agente a constantemente pôr-se no seu lugar, posicionar-se onde lhe é reservado ficar. Após a brilhante cena da piscina, em que Jéssica, chamada por Fabinho e seu amigo, resolve mais uma vez dinamitar qualquer pretensa atitude de fechamento do universo burguês que lhe quer repelir, vemos Bárbara de cama, rosto enfaixado, manifestando abertamente sua ira contra o filho. O mais notável dessa ira, no entanto, é que ela de maneira nenhuma se baseia no fato de que Fabinho esteja pouco preocupado com o acidente da mãe. A ira de sua mãe tem outro endereço, na verdade: é Jéssica, o fator de desarranjo daquela estrutura de dominação. Tanto é assim que logo em seguida a piscina é esvaziada, significando que está sendo apagada qualquer possibilidade de ambiguidade, que o terreno da ambivalência está desaparecendo.
E o que dizer então de Jéssica? O que explica que a filha de uma empregada doméstica tenha trazido consigo lá de Pernambuco uma postura frente às coisas da vida muito mais avançada do que a de sua mãe? (“Segura demais de si,” comenta Fabinho). Se o habitus de classe é transferível, é herdado, este não é o caso, assim como não foi o caso para milhões de famílias brasileiras naquele contexto de maior avanço social, quando ainda em 2015 vivíamos os efeitos de um maior investimento em educação por parte do governo. Temos aí então uma hipótese muito forte: Jéssica, que não foi criada pela mãe, acumulou capital cultural de diversas formas, seja por conta de um professor que lhe fez acender o senso crítico, seja pela experiência prática desenhando plantas na empreiteira do tio, o que lhe serviu em seus propósitos de ascensão social. O tom esperançoso da obra, ao fim da projeção, nos faz concluir que, sim, as estratégias de perpetuação das elites desse país não são infalíveis. Nenhuma estrutura deve ser tida como inabalável.
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