Anatomia de uma Queda – e as mortes indecifráveis

 

O filme Anatomia de uma Queda de Justine Triet – França, 2023 – não precisa de mais uma resenha. Aclamado, mas também controverso, muita gente boa já analisou este cult do cinema europeu sob diversos aspectos. Questões como machismo, misoginia, gênero, posições do feminino e masculino em uma relação conjugal, foram muito discutidas. Isso sem deixar de mencionar, claro, a forma como se desenrola esse suspense policial em seu infindável julgamento da mulher suspeita de ter empurrado o marido janela abaixo, causando sua morte.

O que intriga no filme, para muitos é que a queda de Samuel, marido de Sandra, não é esclarecida. Essa morte suspeita, que resulta num processo e julgamento extensos – sendo Sandra, a esposa do morto, suspeita e ré – não tem um veredicto. Será que não? Muitos de nós ficamos com a sensação de que nada foi esclarecido no filme. Apenas que, o filho do casal, numa tentativa desesperada de montar um quebra cabeça de fatos, decide, ao final, “salvar” a mãe da condenação pela morte do pai.

Sim, o garoto, Daniel decide. É ele quem, como todo sujeito dividido que somos – como diria Lacan –duvida, titubeia, vacila, mas, precisa resolver qual caminho irá tomar. Como todos nós. Só que no filme, essa vacilação ganha ares mesmo caricatos, fazendo com que o pequeno detetive arrisque a vida do próprio cão guia sem ter a menor certeza de que aquilo iria lhe trazer alguma resposta.

Mas traz. A resposta está nele. Quem monta o quebra-cabeça é ele. Dentro de sua mente, em meio às suas incertezas, ele dá o veredicto. E o júri acata. O juiz idem. A mãe é absolvida pelo filho. Mas a morte do pai continua lá, intacta, indecifrável.

Então, há algo que podemos extrair dessa obra tão densa de significações: ao fim e ao cabo, somos nós quem decidimos os desfechos de certos fatos, e assim, desvendamos alguns mistérios da vida. Nós decidimos dentro das nossas cabeças quem é o mocinho e quem é o bandido, e todas as motivações que culminam em atos de toda ordem.

E também temos que decidir quando algo nos escapa completamente. Pensemos num sujeito que, comprovadamente, tira a própria vida se atirando pela janela. Depressivo? Psicótico? Alucinação? Pouco importa. É sempre um pouco de cada coisa, e talvez nenhuma delas. Mesmo que haja uma carta, um bilhete, não iremos nunca entender e, portanto, só nos cabe decidir o que aconteceu naquele instante e em todos os que antecederam o trágico ato. Tomamos essa decisão mesmo em nosso inconsciente e seguimos com ela no sentido de acatar e acolher esse desfecho que o sujeito quis dar para a sua vida. Se é que para ele, era um desfecho... Até isso, temos que decidir.

Voltando ao filme, percebemos que ao longo da história, a hipótese de suicídio vai sendo paulatinamente abandonada. Menos pelo pequeno Daniel. Para ele, tudo pode ter acontecido – menos aquilo que todos começam a achar (no filme e fora dele): sua mãe ter matado seu pai.

Existe um aforismo anônimo citado na obra de Max Weber: “cada um vê o que tem no coração”. É um pouco isso que fazemos todos os dias, muitas vezes sem nos darmos conta. Mesmo sem termos certeza de nada, mesmo sem termos provas cabais, chegamos a conclusões sobre diversas situações que, aparentemente não possuem explicação. A dúvida é sábia, como já disse Freud, e é nela que encontramos as repostas, pois não é em outro  lugar senão dentro de cada sujeito que ela se encontra.



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