Anatomia de uma Queda – e as mortes indecifráveis
O que intriga no filme, para muitos é que a queda de Samuel,
marido de Sandra, não é esclarecida. Essa morte suspeita, que resulta num
processo e julgamento extensos – sendo Sandra, a esposa do morto, suspeita e ré
– não tem um veredicto. Será que não? Muitos de nós ficamos com a sensação de
que nada foi esclarecido no filme. Apenas que, o filho do casal, numa tentativa
desesperada de montar um quebra cabeça de fatos, decide, ao final, “salvar” a
mãe da condenação pela morte do pai.
Sim, o garoto, Daniel decide. É ele quem, como todo sujeito
dividido que somos – como diria Lacan –duvida, titubeia, vacila, mas, precisa
resolver qual caminho irá tomar. Como todos nós. Só que no filme, essa
vacilação ganha ares mesmo caricatos, fazendo com que o pequeno detetive arrisque
a vida do próprio cão guia sem ter a menor certeza de que aquilo iria lhe
trazer alguma resposta.
Mas traz. A resposta está nele. Quem monta o quebra-cabeça é
ele. Dentro de sua mente, em meio às suas incertezas, ele dá o veredicto. E o
júri acata. O juiz idem. A mãe é absolvida pelo filho. Mas a morte do pai
continua lá, intacta, indecifrável.
Então, há algo que podemos extrair dessa obra tão densa de
significações: ao fim e ao cabo, somos nós quem decidimos os desfechos de certos
fatos, e assim, desvendamos alguns mistérios da vida. Nós decidimos dentro das
nossas cabeças quem é o mocinho e quem é o bandido, e todas as motivações que
culminam em atos de toda ordem.
E também temos que decidir quando algo nos escapa
completamente. Pensemos num sujeito que, comprovadamente, tira a própria vida
se atirando pela janela. Depressivo? Psicótico? Alucinação? Pouco importa. É
sempre um pouco de cada coisa, e talvez nenhuma delas. Mesmo que haja uma
carta, um bilhete, não iremos nunca entender e, portanto, só nos cabe decidir o
que aconteceu naquele instante e em todos os que antecederam o trágico ato.
Tomamos essa decisão mesmo em nosso inconsciente e seguimos com ela no sentido
de acatar e acolher esse desfecho que o sujeito quis dar para a sua vida. Se é
que para ele, era um desfecho... Até isso, temos que decidir.
Voltando ao filme, percebemos que ao longo da história, a hipótese de suicídio vai sendo paulatinamente abandonada. Menos pelo pequeno Daniel. Para ele, tudo pode ter acontecido – menos aquilo que todos começam a achar (no filme e fora dele): sua mãe ter matado seu pai.
Existe um aforismo anônimo citado na obra de Max Weber: “cada um vê o que tem no coração”. É um pouco isso que fazemos todos os dias, muitas vezes sem nos darmos conta. Mesmo sem termos certeza de nada, mesmo sem termos provas cabais, chegamos a conclusões sobre diversas situações que, aparentemente não possuem explicação. A dúvida é sábia, como já disse Freud, e é nela que encontramos as repostas, pois não é em outro lugar senão dentro de cada sujeito que ela se encontra.
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