O estigma e o desvio em Dias Melhores
Dias Melhores, filme de Hong Kong dirigido por Kwok Cheung Tsang, candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2021, traz à tona, numa primeira observação, a questão do bullying como foco da trama. E esse é, sem dúvida, o principal reclame que o filme faz aos seus telespectadores num primeiro plano. No entanto, todo o enredo deste tocante filme pode nos fazer pensar sobre algo que vem muito antes do bullying: o estigma.
O sociólogo norte-americano Erwin Goffman, em seu livro “Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, demonstra como as sociedades, ao longo dos séculos, trataram de criar estereótipos daqueles sujeitos que devem ser considerados os seres humanos “normais” e, com isso, automaticamente, aqueles que não se enquadram nesse campo acabam sofrendo toda a sorte de discriminação – os estigmatizados. Entretanto, fica a pergunta na contracapa do livro: “nessa forja de proscritos, quem verdadeiramente é marginal: os estigmatizados que a sociedade marginaliza ou a própria sociedade”?
Pois bem. Voltemos ao filme.
Logo no início, temos a cena do suicídio da menina que sofria bullying no colégio por não conseguir alcançar os padrões de inteligência e os resultados que se esperavam dela. Aqui já temos uma forma de estigma que acomete as sociedades que reverenciam a meritocracia, o sucesso individual, a competitividade para “vencer”, sendo que vencer torna-se algo objetivo e não mais subjetivo. Podemos mesmo dizer que o bullying é então uma consequência do estigma. Isso pode ser percebido no desenrolar dos acontecimentos após o suicídio da estudante. Niam, protagonista do filme, imediatamente se compadece explicitamente e, de certa forma, se identifica com a suicida mesmo sem ser sua amiga próxima, dando a entender que os estigmatizados se enxergam como iguais. E Goffman sustenta isso:
“Na maioria dos casos, entretanto, ele (o estigmatizado - parêntese meu) descobrirá que há pessoas compassivas, dispostas a adotar seu ponto de vista no mundo e a compartilhar o sentimento de que ele é humano e ‘essencialmente’ normal [...] a despeito de suas próprias dúvidas”.
Então Niam, que era até então apenas estigmatizada por ser filha de uma mulher pobre, provavelmente mãe solo que vivia de contrabandos, passa imediatamente a ser o novo alvo de bullying na escola ao demonstrar a sua compassividade pela colega que se suicidara.
Essa compassividade entre os estigmatizados aparece também no momento em que Niam conhece Liu, que estava apanhando de uma gangue num beco. Ela então o “salva” com um beijo forçado dando início a uma relação entre ambos que será, até o final do filme a chave para entender esses conceitos que expus acima. Porque Liu é também um estigmatizado. No entanto, ele já se colocara à margem, já se autodenominava um proscrito. E aqui, é interessante notar como dois estigmatizados se percebem como tal, mas de maneiras distintas: Liu estava acostumado a apanhar, mas já não mais por ser um ato de bullying como em Niam que, muitas vezes fora pega por seus algozes que lhe surravam como forma justamente de exercer o bullying contra ela. Liu, em vez disso, apanhava em função da vida que levava, em meio a disputas de gangues, no submundo típico dos marginalizados que “desistem” de furar a barreiras dos “normais”. Não sofria mais bullying porque se colocou à margem. Já Niam sofria bullying justamente por tentar furar a barreira dos normais.
Com isso, o filme vai mostrando no desenrolar de sua história que, no limite, o estigma é um dos fatores que determinam a marginalização dos sujeitos nas sociedades, seja por meio de bullying, seja pelo chamado comportamento desviante. Aqui vale mencionar a obra “Outsiders: estudos de sociologia do desvio”, escrita por outro sociólogo norte-americano, Howard Becker. Esse autor sustenta que o fenômeno do desvio e do comportamento desviante em sociedade ocorre não por conta de traços particulares presentes na pessoa tida como desviante, mas tão somente das regras estabelecidas por grupos sociais em suas definições daquilo que consideram desvio. Dessa maneira, grupos distintos em uma mesma sociedade podem considerar desviantes comportamentos muito diferentes e pessoas tidas como desviantes em um grupo podem muito bem dispor de alto grau de prestígio em outro.
O caso de Liu é exemplar porque temos aí um outsider em toda a definição de Becker, dotado de estilo de vida e visão de mundo próprias, mobilizando inclusive suas características consideradas desviantes como recursos que potencializam suas ações e de seu grupo social, sinalizando para o seu destino no filme. A interação entre os dois personagens principais do longa pode ser assim entendida quase como um encontro entre Goffman e Becker através de seus conceitos mais notórios, o estigma, personificado por Niam, e o outsider, representado por Liu. Sem dar spoilers, a grandeza de Liu residirá então justamente na sua capacidade de retribuir o “gesto de aproximação” que simbolizou seu vínculo com Niam e então nos comunicar, inspirado pelo interacionismo da Escola de Chicago, que a adesão ou rechaço a regras sociais não é atributo deste ou daquele indivíduo, mas das relações humanas.
Maria Carolina Amendolara
colaborou:
Marcos Aquino
REFERÊNCIAS
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1ª Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
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