A ciência é uma atividade neutra?

 


Marcos Aquino


Muitas vezes nos deparamos com certo senso comum de que o cientista deveria se posicionar, e muitas vezes até se comportar, de maneira neutra, quase como um jornalista que ouve “os dois lados da questão”, sempre buscando a “isenção” ou a “imparcialidade” capaz de blindar a sua pesquisa de qualquer interferência de caráter valorativo.

Gostaria de problematizar semelhante estereótipo recorrendo a um dos sociólogos que primeiro realizou esse tipo de reflexão a respeito na natureza da cientificidade. É justamente a partir do conceito de “neutralidade axiológica”, ou “neutralidade de valores”, que o pensador alemão nos permite compreender o verdadeiro lugar dos valores na prática científica (Weber, 1999).

O mundo real, diz Weber, é um mundo de valores. Cotidianamente, nós tomamos as nossas decisões, escolhemos as melhores formas de agir e desempenhamos os nossos papeis sociais em função de todo um universo de valores, sejam culturais, políticos, morais, religiosos, nacionais, éticos, etc. Estamos cercados por eles e somos constituídos por eles. Temos, como seres sociais, as nossas finalidades últimas, os nosso “fins”, mas também “meios” para atingi-los.

A ciência, uma das práticas significativas e fundamentais em todo o mundo moderno, deve ser compreendida nesse contexto. Ela se define, segundo Weber, como o lugar do tratamento metódico, sistemático, de um conhecimento que nasce de uma realidade necessariamente não ordenada e seguirá caminhos (publicações, teses, entrevistas, manifestações públicas, etc.) igualmente não ordenados, o que não quer dizer que o seu caráter metódico, racional, deva ser abandonado. Se a ciência, por um lado, detalha, tipifica e antevê causas e consequências como forma de ordenar qualquer investigação (meios), o cientista, ser social como qualquer um de nós, dotado de crenças e interesses, escolhe temas, seleciona conceitos, pondera sobre diferentes métodos, a partir das suas opções subjetivas e de suas convicções (fins).

A ciência, evidentemente, não é um “ponto de vista” nem uma “opinião” formulada por aqueles que a praticam. Todavia, isso não quer dizer que a ciência deva ser entendida como uma prática completamente destacada do mundo, como se os cientistas vivessem em uma realidade paralela, imunes a interferências da cultura e da ordem moral ou política. A objetividade característica do fazer científico decorre não de algo que seja inerente ao objeto de estudo de um pesquisador, e sim da sua capacidade, do seu rigor, em construí-lo de maneira objetiva. Por existir em um mundo de valores, a própria ciência é um valor, e dos mais legítimos, por sinal, dada a sua importância prática para o mundo moderno.  

Muitas vezes as ciências sociais são acusadas de “tomar partido” diante das questões candentes que mais nos afetam como sociedade e tal acusação faz parte de toda uma estratégia que visa deslegitimá-las frente às chamadas “ciências duras” ou “da natureza”. Mas parte-se de uma premissa falsa com isso: no sentido weberiano, as ciências naturais encontram-se tão sujeitas a justificar as suas práticas no terreno dos valores quanto o mais “engajado” cientista social. Nem precisamos mencionar as questões éticas inerentes a qualquer procedimento de pesquisa. Basta, por exemplo, acompanharmos as atuais polêmicas em torno do negacionismo científico (crenças anti-vacina, terraplanismo, criacionismo, etc.) e da necessidade do posicionamento dos cientistas dessas áreas nas polêmicas instaladas para nos darmos conta do fato.

Eis a mensagem que quero passar com este pequeno texto: o esclarecimento da população sobre temas tão fundamentais torna-se uma necessidade real, inserida na dimensão valorativa e ao mesmo tempo circunscrita ao que é delimitado pelo método científico. Se valores atinentes à racionalidade têm sido tão vilipendiados ultimamente e a defesa do método científico torna-se a mais essencial das bandeiras, conclui-se que o próprio dispositivo definidor da ciência é parte dessa realidade comum a todos: não absoluta, e sim relativa, sujeita à prática, isto é, ao que se faz da ciência e não ao que a ciência faz de nós.

 

 

 

 

Referência bibliográfica

 

WEBER, Max. ‘A ‘Objetividade’ do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política’. In: Metodologia das Ciências Sociais. Campinas: Ed. UNICAMP & Cortez Editora, 1999.

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