O Cheiro do Ralo e a monetarização do humano na modernidade




Este texto é uma tentativa de elucidar alguns conceitos do sociólogo alemão Georg Simmel, desta vez a partir de discussões estabelecidas pelo brilhante filme de Heitor Dhalia.

Neste longa metragem de 2007, conhecemos Lourenço, um negociante de objetos usados que passa seus dias enfurnado em um galpão recebendo a visita de clientes, em relação aos quais ele nutre um desprezo que beira o patológico. Para Lourenço, o mais importante não são as pessoas, e sim as coisas. Trata-se, a partir dessa interpretação, de um personagem construído como um estereótipo, ou até mesmo um tipo ideal, do indivíduo blasé - conforme a conceituação simmeliana - que habita as grandes metrópoles da modernidade, onde a impessoalidade é a regra.

Logo na primeira cena, somos surpreendidos por uma bunda feminina em primeiríssimo plano. A câmera segue, de trás, o andar de uma personagem que depois iremos conhecer, num movimento subjetivo de quem segue uma mulher na rua, como se já neste início da narrativa fôssemos apresentados ao modo de ver do anti-herói que em seguida tomará o filme: ele é incapaz de ver as pessoas em seu conjunto complexo de características, em seus traços inerentes, em sua integralidade. Para Lourenço só interessa aquilo que elas têm a lhe oferecer no momento. É tão somente a bunda da atendente da lanchonete o que o atrai e nada mais. Ele não enxerga nem o restante do corpo onde essa bunda se situa, muito menos a pessoa que o habita. Seu nome, justamente aquilo que ela teria de próprio, não se ouve. Vemos apenas sua boca se mexer.

Tudo indica que estamos diante da radicalização última, da estereotipação daquilo que Simmel denominou, em “A metrópole e a vida mental”, de atitude blasé, presente quando se torna impossível ao indivíduo a consideração de todos ao seu redor em sua totalidade, sob pena de não dar conta de tamanha multiplicidade de informações e afetos. Mas antes de nos aprofundarmos um pouco mais neste conceito e sua relação com o filme, vamos primeiro acompanhar o desenvolvimento das ideias do autor.

Segundo Simmel, se a modernidade, por um lado, possibilitou a liberdade de movimentos da personalidade, por outro, foi palco de uma objetivação generalizada de todos os conteúdos práticos da vida humana, de tal modo que a separação entre sujeito e objeto ganha na modernidade ares de evidência inquestionável. O inevitável disso é que a relação entre pessoa e posse torna-se mediada pela instância objetiva dos valores monetários. Se anteriormente as relações objetivas (que são todas aquelas que têm consequências no mundo prático) conectavam-se à personalidade, isto se desfaz com o advento da modernidade. Os indivíduos possuem agora uma existência fragmentária: já que se tornou impossível incorporar subjetivamente tudo aquilo que se objetivou em sociedade, já que se perde a condição de apropriação subjetiva das coisas, logo as atividades em si, os fins em si mesmos, desvalorizam-se, dando lugar a uma valorização dos meios, na qual o dinheiro assume o papel principal.  

O individualismo assumido por Lourenço é aquele que Simmel descreve como quantitativo, em vez de qualitativo, pois não é a lógica da singularidade o que move o personagem, e sim a impessoalidade levada ao seu ponto de culminância. “Insensível, é isso o que você é”, ele ouve, em determinada cena. “Nunca gostei de ninguém”, assevera. Lourenço é então retratado como um indivíduo quase que completamente destituído de vontades genuínas. Na lanchonete, por exemplo, para ele, tanto faz o refrigerante que irá tomar. Tanto faz o hambúrguer. Não apenas os objetos, mas muitas das expressões que ele usa em seus diálogos com as pessoas que o cercam são de segunda mão, expressões das quais ele se apropria e repete como receptáculos fechados, esvaziadas de sentido, úteis apenas em sua serventia instrumental, apenas forma, sem conteúdo.  

Em suas interações com os clientes de seu negócio de objetos de segunda mão, Lourenço não faz questão nenhuma de demonstrar empatia ou fingir interesse naquilo que eles têm para contar. Seu olhar blasé não reconhece nenhuma importância psicológica nos objetos que lhe são oferecidos. Eles são valorizados pela forma monetária que assumem, jamais pelo seu conteúdo afetivo, ilustração perfeita daquilo que Simmel descreve em “A filosofia do dinheiro”, uma análise de como este equivalente de todos os valores acabou por definir uma lógica na qual a objetivação das relações humanas, embora necessária ao desenvolvimento da técnica, foi responsável por desconectar a personalidade do contato direto com os vetores materiais de mediação dos indivíduos.

Já em “A metrópole e a vida mental”, o autor desenvolve ainda mais essas ideias. Afirma que, dada a multiplicidade de artefatos, a economia da metrópole elevou em importância os meios de troca. Isso se vincula ao domínio do intelecto e o molda segundo o princípio pecuniário, tornando o indivíduo indiferente às peculiaridades genuínas das coisas. Afinal, na metrópole são agregadas tantas pessoas e interesses, integrando-se em organismos tão complexos, que se torna necessária e vital a exatidão calculista da vida prática sobre base impessoal. Dos estímulos concentrados, contrastantes e mutantes típicos da metrópole é que resultou a atitude blasé descrita por Simmel, pois é simplesmente impossível a qualquer um reagir a todas as sensações com a energia apropriada e discriminar toda a multiplicidade de objetos em suas particularidades. O princípio nivelador da economia monetária encontra-se agora interiorizado.

“Eu pagaria para ver essa bunda”, diz o protagonista a si mesmo. Mas a garçonete escuta e o conflito que se segue interrompe a pretensão de Lourenço em monetarizar o corpo de outra pessoa. “É tão difícil acontecer alguma coisa que eu não tenha previsto”, ele reflete logo em seguida, compreendendo que nem tudo pode funcionar de acordo com o princípio impessoal do dinheiro. A moça havia indagado: “você não percebe que eu te mostraria de graça?”. Aquilo que é pessoalmente comprometido, isto é, cujo valor último reside nas qualidades humanas e não no que é quantificável, degrada-se tão logo entre em contato com o nivelamento monetário. É por essa razão que os clientes do negócio de Lourenço mantém-se num mundo à parte, que não é o dele. As preocupações manifestadas por aquelas pessoas, de dentro de suas singularidades, jamais estarão em conformidade com o que rege o protagonista: ele não reconhece, nos objetos em análise, aquele valor intrínseco atribuído pelos seus ofertantes, de tal modo que as negociações tornam-se verdadeiros não diálogos nos quais de um lado há a defesa da história particular do objeto, ligada à história incomparável dos seus possuidores e, de outro, o enquadramento desse objeto numa outra lógica, a da uniformidade que arranca a essência das coisas.    

A partir disso, algum princípio de compreensão podemos ensaiar em relação ao anti-herói do filme, mas isso não é tudo. Lourenço é um personagem redondo, que nos surpreende, jamais plano ou limitado a um estereótipo qualquer. Em determinado momento ele parece querer afirmar algo próprio de si, mesmo que de maneira torta: ele começa a inventar uma história que dê sentido a si mesmo, como que elaborando um modo de vida que expresse, mesmo que artificialmente, a sua incomparabilidade individual. Ora, é exatamente isso o que Simmel passa a desenvolver a respeito do indivíduo na metrópole, no decorrer do texto citado. Quanto mais impessoal se torna a sociedade, quanto maior é a brevidade dos contatos interumanos na metrópole, maior é a necessidade de individualização de traços mentais e psíquicos. Trata-se de uma tentativa de o indivíduo constituir aos olhos dos outros uma personalidade não ambígua, de exagerar o elemento pessoal, particular e exclusivo de si mesmo para permanecer perceptível até para si próprio: o cheiro do ralo como uma metáfora da busca do indivíduo por algo tangível que o represente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SIMMEL, Georg. 1973 [1903]. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio     Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

_____. Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1987.

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