O filme Whiplash segundo a sociologia de Pierre Bourdieu: esboço de uma análise cinematográfica
O filme “Whiplash: em busca da perfeição”, do diretor norte-americano Damien Chazelle, que conta a história de um jovem músico baterista em sua busca pelo reconhecimento de um renomado professor do conservatório onde estuda, apresenta em sua narrativa uma série de pressupostos que encontramos em algumas das teorias formuladas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Logo na cena inicial, o estudante Neuman é flagrado pelo professor Fletcher tocando bateria no conservatório. Ao final da performance, Fletcher faz uma abordagem propondo ao rapaz que venha a participar de sua jazz band, deixando claro que para isso Neuman terá que ser aprovado para o posto. A partir daí, o filme se desenrola num verdadeiro calvário de Neuman em busca – como a própria tradução para o português assinala – da perfeição. O que, na verdade, significa, em termos da terminologia bourdiesiana, consagração. O filme inteiro parece dedicado a tornar manifestos todos aqueles investimentos que os agentes põem em prática em sua trajetória em determinado campo, no caso, o campo da música.
Um campo, segundo Bourdieu, é definido como um espaço estruturado de posições dentro do qual os agentes concorrem, mobilizando diversas formas de capital e também o capital específico àquele campo. No caso do campo da música, mais especificamente do jazz, há a presença da valorização de uma série de atributos designados como “talento”, atributos esses que são buscados incessantemente pelo personagem principal. A jornada de Neuman pode ser definida, portanto, como a de alguém que pretende, a partir da manifestação de um talento específico, fazer valer a sua entrada no campo almejado, pondo à prova constantemente esse talento diante de quem detém o conhecimento necessário (no filme, o professor Fletcher) para o reconhecimento de tal capacidade.
Percebe-se num primeiro momento que existe uma relação explícita na qual o professor, dominante no campo da música, age no sentido de buscar talentos para a sua jazz band para sua própria consagração, que se traduz na perpetuação no campo como dominante. Fica evidente ao longo do filme que a intenção de Fletcher não é permitir que grandes talentos sejam consagrados, uma vez que isso ameaçaria seu posto de dominante no campo. Para tanto, o personagem do professor se utiliza de um autoritarismo agressivo bem como de expressões corporais como gestos e trejeitos de maestro – recursos utilizados para mascarar a fragilidade de Fletcher como músico, deixando antever apenas sua posição de dominação à qual os estudantes (e também Neuman) aderem sem pestanejar, pois acreditam que ao fim e ao cabo irão ter a aprovação do mestre, o que de fato jamais acontece. A cena em que Fletcher exclui o trompetista, fazendo-o acreditar estar desafinado mesmo não estando, comprova que sua intenção não é de forma alguma reconhecer talentos verdadeiros no campo da música. Sua única motivação é montar a sua jazz band perfeita – o que o manteria por mais algum tempo consagrado: dominante no campo. Assim, o conceito de campo na teoria bourdiesiana fica bastante claro e mais ainda a relação que existe entre os dominantes e dominados do campo. Aos dominantes interessa manterem-se nessa posição e suas estratégias concorrem para isso. Aos dominados, aspirantes do campo, interessa chegarem ao posto de dominantes e estes farão de tudo para atingirem seus objetivos.
Este é o papel de Neuman. O jovem aceita o desafio e todo o filme transcorre em torno da sua luta no jogo do campo para o qual pretende sua consagração. Entretanto, Neuman, já no limite de suas possibilidades, vê-se mais uma vez preterido por Fletcher que, ardilosamente, cria estratégias que atrapalham que seu talento venha a público. Nesse momento, com a ajuda de seu pai, Neuman denuncia Fletcher por seus abusos e este então acaba sendo demitido do conservatório.
É elucidativo a partir da teoria dos campos de Pierre Bourdieu o fato de que para Neuman a queda de Fletcher não significou uma vitória, pois esta na verdade não foi obtida a partir da luta dentro do campo e sim fora dele. Apesar da queda de Fletcher, Neuman ainda não se consagrara no campo da música.
O final do filme é sublime, pois deixa subentendido o momento em que Neuman desafia Fletcher em mais uma de suas astuciosas formas de impedir que ele se consagre como músico. A cena em que Neuman encontra Fletcher tocando piano numa casa noturna medíocre e Fletcher então o seduz novamente como uma isca para se alçar novamente a dominante no campo é lapidar. E Neuman, mesmo depois de passar por tudo o que passou aceita voltar ao mestre – com uma única intenção subliminar: a intenção de derrotá-lo. E a única maneira para isso acontecer foi certamente derrotá-lo numa disputa dentro do campo e não fora dele: desafiando o mestre em pleno palco, numa performance magnânima diante da qual Fletcher finalmente sucumbe e consagra Neuman diante de toda uma plateia – uma consagração pública.
O filme contém ainda algumas inserções sobre a teoria da dominação masculina, que é um conceito que pode se estender para todas as formas de dominação, não se restringindo apenas ao sexo. Isso é percebido pela aquiescência dos alunos em relação ao mestre que os trata indignamente e, mesmo assim fica aparente a cumplicidade de todos diante dos abusos – deixando antever a dominação simbólica na qual as vítimas contribuem inconscientemente para a perpetuação da dominação uma vez que suas disposições subjetivas, ou seja, todo o trabalho de inculcação aluno/mestre, vão ao encontro das estruturas objetivas apresentadas. Mais ainda, o linguajar de Fletcher é todo permeado de conotações machistas e sexistas – para não deixar de fora a questão de gênero que é a base de toda a dominação masculina bourdiesiana. Há inclusive uma cena em que uma das únicas moças da banda é hostilizada por Fletcher numa alusão sexista direta: “E você? Está aqui na frente porque é bonitinha?” Depois disso, as figuras femininas desaparecem completamente da banda deixando a entender que aquilo “não era coisa de mulher”. Fletcher, em seu palavreado, está a todo o tempo inferiorizando as mulheres e os gays dando a entender que além de ser dominante no campo da música, também o é por ser homem, ser superior “per se”.
Aprendemos, com este filme, muitas lições presentes na teoria de Pierre Bourdieu. A importância e a atualidade do autor francês residem na sua capacidade de desvendamento do significado social de comportamentos que, embora naturalizados pela sociedade, na verdade escondem diversas formas de dominação simbólica. A obra analisada, apesar de ser uma ficção, não deixa de ser ilustrativa da realidade concreta na qual observamos comportamentos similares que podem comprovar a validade dos conceitos apresentados.
Texto escrito por Maria Carolina Amendolara
Texto escrito por Maria Carolina Amendolara
Com a colaboração de Marcos Aquino
Nunca li Bordieu, mas minha orientadora costumava citá-lo a respeito do perigo de tranformarmos meros modelos da realidade em uma realidade de modelos, o que nunca esqueci. Legal ter uma perspectiva sociológica sobre um filme impactante e inesquecível, que sempre intuí transitar, de um ponto de vista psicanalítico convergente, pela denúncia da pulsão de morte envolvida na obsessividade em atingir ideais superegóicos, essencialmente fálicos..
ResponderExcluirBoa, companheiro. Aguarde os próximos!
ResponderExcluirValeu, Edu! Acho bastante enriquecedor o diálogo da Sociologia com a Psicanálise. Fique sempre à vontade para contribuir.
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