A rua é uma festa: um novo olhar sobre a cidade à luz da teoria de Jane Jacobs






“Criança precisa andar pela cidade para ser cidadã”.
Irene Quintáns, Urbanista




Há pouco tempo, escrevi um texto no qual estabelecia uma diferença na forma como os cariocas e os paulistanos fazem uso das suas cidades. Para tanto, eu conto como foi que eu, que sou paulistana e morei em São Paulo desde que nasci até meus trinta anos de idade, mudei completamente o meu modo de perceber e conceber uma cidade ao vir morar no Rio de Janeiro.

O que eu tento mostrar é a forma peculiar como cariocas e paulistanos fazem uso das suas cidades. Um ponto crucial que expressa essa diferença é a utilização do espaço público. Em São Paulo as pessoas vivem majoritariamente intramuros, praticamente não há convivência nas ruas. Já no Rio de Janeiro eu pude ter a experiência, enquanto moradora do bairro de Ipanema há dezesseis anos, de uma cidade como um organismo vivo.

E então, para corroborar com essas minhas ideias e iluminar as minhas reflexões um tanto quanto ligeiras naquele texto sobre este tema tão relevante – qual seja: o que significam uma cidade viva e uma cidade morta – eu tive a oportunidade de assistir ao documentário “Cidadã Jane: A Luta pela Cidade” (EUA, 1996). O filme conta a história da luta de Jane Jacobs, uma jornalista e socióloga norte-americana que atuou de forma preponderante na defesa de uma configuração urbana que não permitisse que a cidade de Nova Iorque, no início da década de 1960, se transformasse numa cidade amorfa e sem vida.

Para Jacobs, uma cidade viva é aquela em que há circulação de pessoas nas ruas. Uma cidade está viva quando seus habitantes andam pelas calçadas, encontram-se nas praças, frequentam mercados. Para Jane Jacobs as ruas e as calçadas são os órgãos mais vitais de uma cidade. E a partir daí ela demonstra que quanto mais as pessoas andam e usam as calçadas da cidade, mais segura ela se torna. Isso porque os habitantes, quando estão nas ruas, quando usam as calçadas, quando percorrem seus bairros, acabam tornando-se protagonistas da trama urbana em suas próprias localidades, eles são os “olhos” que defendem o espaço público dos perigos que possam existir. Sem gente na rua, sem os moradores dos bairros nas calçadas não há como saber quem é quem. Ruas desertas cortadas por grandes avenidas cheias de carros são o símbolo de cidades mortas onde a violência ganha terreno.

Um aspecto particular acerca desse assunto que foi decisivo na forma como eu passei a conceber a vida em uma cidade foi o fato de meus dois filhos terem nascido e estarem sendo criados no Rio de Janeiro. Minha primogênita teve toda a sua infância vivida na Praça Nossa Senhora da Paz e no Posto 8, no bairro de Ipanema. Muitas das suas amizades foram feitas nesses lugares. Isso mostra a enorme relevância que o espaço público exerce na vida social de um carioca. Meu segundo filho segue o mesmo caminho. E isso não é um privilégio da Zona Sul carioca, como muitos podem pensar. Mesmo com as diferenças que marcam os espaços da cidade, isso também acontece no subúrbio do Rio, onde ainda hoje as clássicas cadeiras na calçada se fazem notar em muitos lugares. E então, nesses dez anos que separam o nascimento dos meus filhos, surgiu um novo fenômeno que virou moda e que ilustra não apenas o modus vivendi carioca, mas também a forma como eles se apropriam da cidade, demonstrando que, afinal de contas, ela é viva e de todos: refiro-me à realização de festas infantis em diversos lugares públicos.

No caso do meu filho, decidi fazer a festa dele de três anos na praça Nossa Senhora da Paz, pelo significado que ela tem em sua vida. Ele simplesmente ama essa praça, vai brincar lá todos os dias, é conhecido por todos ali. Seus amigos da escola também frequentam a praça e então todos se sentiram muito à vontade. Isso faz com que a celebração ganhe um significado maior do que simplesmente a comemoração do aniversário: ela cria um sentimento de pertencimento, pois as crianças, com toda a certeza, sentiram uma enorme identidade com o local e isso acabou sendo passado até mesmo para aqueles que vieram de outros bairros. A mistura do público com o privado ajuda a formar cidadãos que sabem fazer bom uso de suas cidades - o que sem dúvida faz com que as mesmas sejam cuidadas e não se tornem apenas uma malha viária por onde carros e mais carros se deslocam de um lugar fechado privado a outro.

A noção defendida por Jacobs e que pode ser apreendida é que ao frequentar lugares públicos desde a infância o cidadão irá tornar-se um adulto mais tolerante, sensível e livre de preconceitos. A conclusão é que ao segregar menos, no limite, há uma diminuição da violência por meio do convívio social. Fora o fato de que o sentimento de pertencimento a um lugar é dado pelo seu uso, o que, consequentemente, resulta em sua preservação. E a preservação de uma cidade está longe de ser algo que acontece de fora para dentro. Ao contrário, ela se dá de dentro para fora: são as pessoas, os habitantes, a vida que pulsa nos bairros, nas esquinas, nas praças, nos parques que irão fazer da cidade um lugar vivo e seguro. É do caos urbano que emerge sua ordem. E não a ordem imposta por planejamentos que resultam em largas avenidas e arranha-céus que mascaram a vida e que, ao fim e ao cabo, afastam as pessoas das ruas e tornam as cidades lugares por onde só transitam carros e violência.


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