Nomadland, ou o espírito nômade do capital
Em Nomadland (terra nômade, em tradução literal), Fern se vê
diante de uma situação difícil quando o marido morre e a empresa para a qual
trabalhavam vem à falência durante a crise econômica de 2008. Ela é deixada literalmente
sem chão, pois a casa em que morava era de propriedade de seu empregador, assim
como todo o território que lhe fornecia as bases de sua experiência comunitária,
uma “cidade empresarial” na zona rural de Nevada, Estados Unidos. Temos aí uma
personagem que, se antes se fazia entregue às determinações de uma estrutura localizada
a lhe definir o cotidiano, agora é levada a se repensar, a rever os fundamentos
de seus valores. É como se ela refletisse: vale a pena ter como norte a fixidez,
que se provou ilusória (dados os movimentos da economia), de um endereço definido
em um lugar geográfico, ou será que o sentido não poderia ser buscado justamente
naquilo que escapa da inércia, que se desloca, que não finca raízes? Eis o mote
a partir do qual o filme desenvolve as suas questões.
Sem mais a perder, Fern lança-se na estrada em sua van,
transportando os poucos bens que lhe restaram e com uma resolução na cabeça: se
todas essas estruturas pretensamente sólidas eu posso perder quando uma crise
econômica chega, é razoável deixar de lado qualquer envolvimento com o que é
instituído e enraizado, os vínculos obrigatórios, as pretensões de carreira. Eis
o contorno dos novos tempos: se as próprias referências constitutivas do espaço
social tornam-se erráticas em um contexto de crises sucessivas, o movimento da
personagem na direção de outras formas de experiência e outras modalidades de
conexão com as pessoas e com o mundo, sem vínculos obrigatórios ou fixos, pode
ser lido como resposta a tal estado de coisas, a vida como peregrinação,
passando longe de ser um roteiro operado pelo agente, mas como a
impossibilidade de um ancoradouro.
Vem daí a ênfase na recusa de Fern e do grupo de nômades com
o qual ela trava contato em atribuir importância a coisas materiais: destituídas
de qualidades humanas, elas são meros objetos de troca, sem valor monetário. São
celebradas apenas quando remetem não à sua função instrumental, mas a um envolvimento
humano que lhe atribui sentido, funcionando como suporte de uma memória afetiva
muito particular. É emblemática a cena do prato de porcelana quebrado sendo
restituído pedaço por pedaço, além da desimportância atribuída a um isqueiro
cuja relação com um ser humano de carne e osso será posteriormente assumida. A
desvalorização do mundo material em favor de uma lógica de relações na qual os
objetos são os meios e não os fins a serem buscados pode, de fato, na ótica do
filme, fazer emergir a autenticidade do humano e de suas conexões tidas como
mais verdadeiras e autênticas.
Isto não quer dizer que o mundo apresentado pela diretora Chloé Zhao, com bastante realismo, aliás, seja isento de ambiguidades, tanto o mundo dos personagens fictícios quanto o próprio espaço das relações reais em um sistema capitalista, que tem renovado de maneira espantosamente eficaz o seu manancial de argumentos legitimadores. Em um capitalismo transformado, “pós-fordista”, “flexível”, “líquido”, regido por um “novo espírito”, isto é, por novas fabulações ideológicas, o descartável torna-se a regra, a instabilidade deixa de ser um obstáculo e se converte em recurso de exploração. Segundo Boltanski e Chiapello, em O Novo Espírito do Capitalismo (2009), a sucessão de atividades transitórias, denominadas de “projetos”, acaba demarcando novas relações entre as pessoas e as formas de propriedade, por exemplo, através das quais o aluguel tem preponderância sobre a aquisição definitiva dos bens, além de novas relações no próprio mundo laboral, com o advento cada vez mais comum da prestação de serviços esporádicos e intermitentes, em lugar da venda integral e contínua da força de trabalho. Na “cidade por projetos” as conexões temporárias serviriam a todos, na medida em que possibilitariam derrubadas de fronteiras, extensão das experiências e incremento da criatividade.
A aproximação entre o estilo de vida nômade e esse novo
espírito fica evidente. Não vemos o lado repetitivo, pouco recompensador e
degradante dos trabalhos essenciais praticados pelos personagens. Assumem
preponderância as “afinidades eletivas” entre necessidades sistêmicas de
flexibilidade e posturas existenciais de desapego. O nomadismo de Fern e seu
grupo poderia ser entendido como uma jornada anti-sistema apenas se o
capitalismo fosse ainda regido por aquele espírito de solidez e de estruturas
feitas para durar. Mas ao contrário, o que vemos é a reprodução de uma força de
trabalho a partir de vínculos precários, temporários e de remuneração tão baixa
que deixam de ser de interesse geral os alicerces que uma moradia institui. O
habitar como dimensão do vínculo estável a um solo imperecível é um dos
construtos sociais menos questionados pelo senso comum: não é sem propósito que
o direito à moradia tornou-se consolidado em muitas constituições. Deste modo,
a personagem, ao ir contra esse senso comum, ganha uma imagem heroica de alguém
disposto a romper grilhões, a contestar verdades estabelecidas. O desinteresse
de Fern por se fixar, porém, é funcional a este novo panorama de relações, como
descrito pelos autores. A reivindicação do direito inalienável ao trânsito (e
não o direito inalienável à moradia) parece unir os exploradores de mão-de-obra
descartável e os andarilhos precarizados no mesmo ethos comum, com a diferença
de que os armazéns da Amazon, por exemplo, não conhecem limites territoriais e
podem ser instalados em qualquer lugar do globo, ao passo que aos trabalhadores
é legalmente vetado deambular para além das fronteiras de seus países. A
desterritorialização é também objeto de privilégios.
As relações humanas acompanhadas pelo filme, em seus
processos incertos de gênese e reativação já sinalizam para o que acabará se
tornando a temática principal ali discutida: o nomadismo pós-moderno como
descrito por autores como Zygmunt Bauman. Resgatemos a confidência entre Fern e
Bob, a liderança do acampamento, a respeito do inevitável, mas imprevisível,
retorno de pessoas importantes, vivas ou mortas, em algum ponto de nossas
trajetórias: “o que é lembrado, vive”, são os dizeres do pai da protagonista
recordado por ela na conversa. Os envolvimentos humanos e as redes de
convivência são sustentados como episódicos, regidos por uma lógica do
imponderável e do fortuito. “Conheci centenas de pessoas aqui e nós não podemos
dizer um ‘adeus’ final”, discursa Bob. “Apenas dizemos: ‘vejo você na estrada’”.
Os relacionamentos mais significativos, aqueles com os quais, na fala de Bob,
Fern esbarrará inexoravelmente em seu percurso embora não se saiba de antemão
quando nem onde, “seja um mês, um ano ou alguns anos”, também não deixam de servir
de referenciais, memórias, experiências, a serem ligadas ou desligadas,
ativadas ou reativadas, evocadas ou mantidas numa clausura qualquer do
espírito, ao sabor das contingências do caminho que se percorre.
Desde o começo, a personagem se constrói em uma tensão semelhante àquela descrita por Boltanski e Chiapello como definidora dos limites nos quais esbarra a nova configuração, uma tensão entre exigências contraditórias a ser resolvida pelos sujeitos: de um lado um requisito de adaptabilidade, de desenraizamento constante, e de outro a promessa de autorrealização e de singularidade. Se muito do interesse despertado pela narrativa do filme advém justamente das sequências em que somos levados a nos preocupar com a capacidade da personagem e os desafios enfrentados em seu aprendizado das diferentes linguagens e gramáticas que presidem as suas diversas situações de interação com novas companhias de estrada, vemos também a grandiosidade da sua tarefa de rememoração, ou de restituição de significados perdidos pelo caminho, sobretudo no território da empresa para a qual trabalhava, em um movimento contra a dissolução de si mesma, como se uma essência tivesse que ser recuperada.
O capital financeiro, motor das crises sistêmicas, é
corretamente retratado em seu poder destruidor de sonhos, numa cena bastante
didática, inclusive, onde Fern, ao tecer críticas à especulação imobiliária
defendida pelos familiares na casa de sua irmã, reconhece a si mesma muito mais
na qualidade daquilo que Bauman denominou “vagabundo” do que na de “turista”
(Bauman, 1998). Enquanto o vagabundo recusaria a sua vida de perambulação se uma
alternativa mais segura estivesse a ele disponível, o turista é aquele que prefere
estar em movimento e possui um porto seguro caso algo de errado aconteça em sua
prazerosa locomoção. Mas Fern, que na prática não escolheu levar a vida de
afastamento que acabou levando, tendo sido a sua trajetória uma consequência da
perda de seus alicerces materiais e afetivos e por isto teoricamente incluída
na primeira categoria, incorpora de tal modo a experiência do nomadismo que ao
fim e ao cabo passa ela mesma a se comportar como que enquadrada na segunda
categoria, isto é, a de alguém que se define na manifestação de sua liberdade em
um mundo que se apresenta como atrativo ao ponto de exigir ser percorrido e
experimentado, uma turista nesse novo espaço social tecido sem amarras ou
pontos de referência identitária.
O filme é bastante explícito na crítica necessária ao
capital financeiro, o que não quer dizer que tenha se debruçado com a mesma
energia sobre o capital produtivo, sem o qual não há capital financeiro. Os
“atos heroicos” da personagem não deixam dúvidas: vagar sorridente com uma
lixeira pelos corredores da Amazon, reconstruir-se alegremente na lógica da
produtividade a cada novo emprego sazonal sem benefícios, mas tendo em mente
que tudo é temporário e a vida material pode ser sem problemas uma sucessão de
ocupações precárias (desde que as conexões humanas sejam significativas), em
vez de abraçar o estilo de vida mais radical de uma comunidade autossuficiente,
por exemplo. Não deixa então o filme de ter a sua carga de ambiguidade no retrato
que lança acerca de maneiras de ser ajustadas ao modelo de relações de trabalho
e aos dispositivos de lucro contemporâneos, com ares de pós-modernidade.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
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