Torto Arado: para além de um romance
Maria Carolina Amendolara
Marcos Aquino
Torto Arado é ficção. Mas, poderia não ser. Ou, melhor dizendo, o premiado livro do jovem escritor Itamar Vieira Junior evoca uma realidade que permeou e ainda permeia a trajetória de milhares de Belonísias, Bibianas, Salustianas, Zecas, Marias Caboclas, Severos. São esses os personagens que ilustram a saga mais realista que já foi escrita sobre o destino das pessoas que viveram sob o signo da escravidão no Brasil e que, uma vez libertas, experimentaram a ficção que foi a abolição da escravatura no Brasil. Pelo menos, num primeiro momento.
Os negros libertos no Brasil do Século XIX vagavam sem rumo, sem prumo, sem oportunidades, sem acesso a nenhum tipo de direito e, ainda por cima, sem direito à terra. Num primeiro momento, claro, sem direito ao trabalho na terra porque estavam “livres”. Mas, depois, ao se darem conta que só sabiam lidar com lavouras, e que, mesmo que assim não fosse, os brancos não lhes davam oportunidade na cidade – e aqui entram o preconceito, o ódio, o racismo que já se constituía em bases muito radicais em nosso país – precisavam voltar ao trabalho nas fazendas, tendo que ressignificar a escravidão mascarando-a na forma de servidão.
E então, esses negros libertos retornaram às fazendas oferecendo o seu trabalho. Em troca, ganharam uma “morada” que significava poderem erguer uma tapera de pau a pique, podendo também “botar roça”, conquanto trabalhassem de sol a sol, de domingo a domingo, nas lavouras do senhor. Ora, por outro lado, esses fazendeiros, também, num primeiro momento, órfãos de escravos, precisavam de mãos para o trabalho. Formava-se, portanto, uma relação perversa de semiescravidão que se denominou servidão. Aqueles homens e mulheres negros, desesperados por sobreviverem, aceitavam viver nas terras daqueles senhores sob seu jugo, sem receber salário, trabalhando nas lavouras sem descanso, apenas podendo plantar nos quintais de suas taperas para seu próprio sustento.
A isso, chamavam liberdade.
Sem contar que esses senhores, muitas vezes, invadiam seus quintais surrupiando o que de melhor havia em suas roças, deixando apenas o mínimo que podiam.
Mas os negros eram gratos. Faziam festas. Podiam exercer seus costumes religiosos. Enterrar seus mortos nas terras do senhor. E, mais do que isso, estavam livres da chibata. Neste ponto podemos mesmo perceber que, para os ex-escravos, muita coisa havia mudado. No entanto, para os senhores, não. E foi aí que morou o perigo.
A antiga senzala deu lugar às taperas de barro. A possibilidade de ter suas roças era puramente um cálculo econômico: ao invés de pagar um salário, era permitido que plantassem para seu sustento nas terras do senhor. E ainda assim, o senhor levava as melhores batatas e abóboras que brotavam nos quintais dos negros.
Mas os anos passam. As crianças negras cresceram. As crianças que nasceram nas fazendas, nas taperas, nos quintais, tornam-se adultos que não carregavam consigo qualquer sentimento de gratidão para com aqueles fazendeiros. Pelo contrário. Começaram a perceber uns e outros, que, de fato, tinham direito à terra.
Aí começa a história que conhecemos de forma enviesada. Torto Arado descortina esse viés e limpa a história desse povo. Um romance, uma ficção. Que carrega em seu bojo a mais nua e crua realidade do Brasil: a abolição da escravidão do povo negro que nunca se concretizou de fato e que, no caso do povo remanescente de quilombos, daqueles que conseguiram o direito à terra, não foi porque houve um dia uma reforma agrária no Brasil. Porque reforma agrária, nunca houve no Brasil. O que houve, e há até hoje ainda, é “uma luta sangrenta” na qual fica sobre a terra aquele que é o mais forte.
Torto Arado retrata essa luta sem perder o lirismo, a magia, levando o leitor a tomar conhecimento de tudo isso e muito mais, por meio de um romance épico, primoroso e muito tocante.
É admirável na obra a capacidade do autor em nos fazer compreender de maneira profunda uma realidade que é social, histórica, antropológica, sem parecer empregar as ferramentas teóricas dessas disciplinas. Seus recursos diretos são unicamente literários, eis aí a força de sua expressão artística.
Atenção: spoilers
Mencione-se o recurso de adiar a informação, importante para o enredo, sobre qual das irmãs teve a língua cortada na infância. Na primeira parte inteira do livro nós leitores não sabemos se foi Bibiana ou Belonísia a personagem marcada pelo infortúnio da mudez total. Se à primeira vista poderíamos entender a estratégia como um suspense vazio para prender a atenção do leitor, como tanto já se viu, a força do que é dito no restante da obra nos faz entender perfeitamente que se trata, ao contrário, de valorização da própria voz desses personagens a partir da ênfase na sua ausência. Itamar acentua habilidosamente a importância da voz dos excluídos como meio de luta, como algo cuja supressão demarca a trajetória dessas pessoas, incapacitadas por seus exploradores, despossuídas inclusive do poder de comunicar as suas tragédias. A metáfora da perda da voz emerge como um triste diagnóstico da situação dos descendentes da população escravizada.
Uma voz que é, entretanto, retomada a partir do discurso politizado de uma das personagens e, evidentemente, em toda a simbologia religiosa que ecoa na palavra dos encantados, as entidades manifestadas nos rituais do jarê, insistindo em não se calar. Surge aí a própria religião como recurso de luta: a passagem em que o líder espiritual da comunidade mobiliza não a política comum, mas a mitologia jarê, para conquistar a adesão do prefeito à demanda por uma escola no local é exemplar a esse respeito. Canais institucionais de expressão de reivindicações nunca serviram à comunidade em questão, pois nunca estiveram disponíveis a ela. Luta-se com o que se tem, com o que se revela inclusive nesse sentido mais simbólico, identitário, ancestral.
Temos, enfim, o protagonismo feminino como mensagem. A consciência política é também consciência da exploração de gênero e as personagens, deste ou de outro mundo, sinalizam que, se até ali viviam os seus papéis como fatos da natureza, de agora em diante é o caminho da superação que deve ser trilhado, mesmo que tortuoso, como tudo ao redor.
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