O Anti-herói Americano é um anti-social simmeliano



Quem assiste ao filme Anti-Herói Americano (American Splendor, EUA, 2003) de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, longa biográfico que retrata a vida de Harvey Pekar, irá se deparar com a história de um indivíduo que vive a vida de modo sui generis, que não está disposto a sujeitar-se a nenhum tipo de regra social, e para quem as interações sociais não obedecem a nenhuma forma pré-determinada com vistas a qualquer interesse que possa estar contido nessas mesmas interações.

Se o caro leitor conhece o conceito de sociação do sociólogo alemão Georg Simmel, já deve ter desconfiado aonde essas reflexões acerca do filme sobre a vida de Harvey Pekar pretendem chegar. No entanto, antes de entrar em tais alusões sociológicas, permitam-me apresentar um breve resumo do filme, para aqueles que não o assistiram.

Harvey Pekar, o nosso anti-herói real, trabalhava como arquivista num hospital em Cleveland e levava uma vida, como ele mesmo denominava, ordinária. Ao conhecer o cartunista Robert Crumb, decide, com a ajuda do amigo, transformar sua vida numa história em quadrinhos. Surge daí a revista American Splendor, que acaba por levar Pekar a uma certo renome. Isso tudo, assim narrado pode parecer absolutamente banal em termos sociológicos não fosse pelo mero detalhe das características da personalidade de Pekar que fica muito bem retratada no filme na brilhante atuação de Paul Giamatti.

Nesse ponto, gostaria de fazer uma rápida exposição do conceito de sociação de Simmel presente em seu livro Questões Fundamentais de Sociologia. Basicamente, Simmel propõe que é possível diferenciar, em cada sociedade, forma e conteúdo. Segundo este autor, a sociedade significa a interação entre indivíduos, interação essa que surge a partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades. Os seres humanos têm entre si relações de convívio com referência ao outro, um estado de correlação com os outros. O conteúdo é tudo aquilo que existe nos indivíduos que engendram as interações. Entretanto, para que tenha sucesso em seus objetivos, o ser humano necessita obedecer a determinadas formas de estar com o outro, e a isto Simmel denominou sociação. Temos então que “sociação é a forma na qual os indivíduos, em razão de seus interesses (...), se desenvolvem em direção a uma unidade”. Esses interesses formam a base da sociedade humana, segundo Simmel.

Ora. Voltemos então para o nosso anti-herói americano. Percebe-se, logo no início do filme, que Pekar é um sujeito que não participa da sociação. Isso fica evidente quando ele, ainda criança, sai com os amigos pelo bairro numa situação na qual a forma prevista (ou sociação) pressupunha que as crianças estivessem fantasiadas de super-heróis. Sendo ele o único que não estava fantasiado, acaba por não ganhar os doces resultantes da ação. Percebemos claramente que Pekar, ao “desobedecer” a forma de interação social (ao fugir da sociação) acaba sendo punido no interesse nela contido: obter doces pela vizinhança.

No desenrolar do filme e da vida de Pekar – já que se trata de uma história real – diversas situações ilustram o que podemos chamar de um sujeito anti social clássico, no sentido da interação. Entretanto, e talvez para seu desespero ou secreto deleite, Pekar fica famoso com a revista American Splendor. Não é difícil imaginar a tragédia que significa, para uma pessoa como ele, tornar-se alguém com certo reconhecimento social, justo ele que vinha definindo a sua própria personalidade a partir de uma oposição (consciente até) a qualquer tipo contato mais socialmente padronizado, manifestando inclusive profundos desconfortos em situações corriqueiras que a maioria das pessoas experimenta no dia-a-dia.

É exatamente nesse ponto que a trama da vida de Pekar ganha contornos sociológicos geniais. Ao se dar conta da tragédia, Pekar incorpora um personagem de si mesmo - e faz isso como quem foge de uma doença, deixando transparecer aquilo que a sociação tem de mais incômodo para ele por meio de uma teatralização do real. Pekar acaba por transformar o seu viés anti social em sociação, um certo efeito colateral às avessas. Ao ser chamado diversas vezes para o programa de entrevistas de David Letterman, preconiza durante o talk show cenas de verdadeiros descalabros sociais, que ao fim e ao cabo, o tornam uma caricatura de si mesmo. Pekar é então chamado outras vezes para o programa, pois sua atitude incomum transformou as entrevistas em verdadeiras comédias nas quais Pekar apenas precisou “atuar” sendo ele mesmo, ou, para evocar Goffman, usando uma máscara de si mesmo, quase como uma representação de uma personalidade avessa a qualquer representação, por mais paradoxal que isso possa parecer. Os efeitos dessa “estratégia” resultam  positivos em contraposição àquele Pekar real que, na infância, recusara-se a fantasiar-se de super herói.

Referências bibliográficas

SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009.

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